segunda-feira, 13 de maio de 2013

13 de Maio


SENADOR do Paraná ROBERTO REQUIÃO (PMDB) LEMBRA OS 125 ANOS DA ABOLIÇÃO E DIZ QUE BRASIL NÃO TEM NADA A COMEMORAR


Segundo informa o Google, o homem mais velho do mundo chama-se José, mora no interior da Amazônia e tem 128 anos; e há duas mulheres mais velhas do mundo, a senhora Luo, chinesa e a senhora Candúlia, cubana, ambas com 127 anos.
Pois bem, senhoras e senhores senadores, José já estava com três anos e Luo e Candúlia com dois quando aconteceu a efeméride que hoje lembramos, o fim da escravidão dos negros em nosso país. Portanto, o brasileiro, a chinesa e a cubana são mais velhos que a dita Lei Áurea, assinada pela generosa e alva princesa, como até hoje ensinam às nossas criancinhas.
Por mais longevos que sejam os citados, a realidade — aviltante e infamante realidade— é que a libertação dos negros foi tão recente que não supera sequer uma vida um pouco mais estendida.
Na verdade, e a bem dela, nada temos a comemorar.
Não porque fomos o último país do mundo a reconhecer os negros como seres humanos, detentores dos mesmos direitos que os de pele clara, como já antes havíamos reconhecido, depois de uma infalível bula papal, que o índio possuía alma.
Por isso também deveria o Brasil cobrir-se de vergonha.
Não porque em vez de se indenizar os negros, sequestrados na África e submetidos aqui ao trabalho forçado, exigiu-se antes a indenização dos senhores de escravos, como condição para o abominável resgate dos homens e mulheres pretos. Na fala do trono de 3 de maio de 1888, dias antes da tal Lei Áurea, a dita e celebrada redentora elogiou “a abnegação dos proprietários” por abrir mão de suas “peças”, sem que recebessem o resgate pelo sequestro de toda uma raça.
Por isso também deveria o Brasil cobrir-se de vergonha.
Nada temos a comemorar, acima de tudo, porque há 125 anos não cessamos de perseguir, humilhar, torturar e assassinar os negros, em uma contínua, implacável e impiedosa campanha contra os descendentes de africanos que sequestramos e escravizamos.
É a nossa vingança de pele e alma brancas contra os amaldiçoados filhos de Cam. Escaparam da senzala, mas não escaparam de nosso ódio. A contragosto, contra o nosso aprazimento e proveito, foram soltos, mas não se libertaram de nosso preconceito; não escaparam de nossos olhos, da precisa seleção epidérmica que sabemos fazer tão bem……. e disfarçar. Afinal, somos homens cordiais.
À feição de Borges, vamos a alguns breves capítulos da história brasileira da infâmia contra os homens e mulheres pretos.
Foram três séculos de escravidão negra no Brasil. Malditos 300 anos. Tão amaldiçoados que nem os próximos 300 anos serão suficientes para purificar o país da crueldade contra um povo, condenado ao opróbrio por causa da cor da pele.
Talvez soubéssemos mais ainda sobre essa vergonha se os arquivos da escravatura no país não tivessem sido destruídos. É como age a nossa elite branca e racista, é como a casa grande escreve a história.
Foi assim também que ela agiu depois da ditadura de 1964-1985, queimando arquivos, escondendo corpos, tentando apagar mais um capítulo de seu infamante e maldito mando.
A queima dos arquivos da escravatura impede-nos de saber com exatidão quantos negros foram sequestrados na África; quantos morreram no transporte; quantos morreram nos primeiros tempos do cativeiro, pela violência do tratamento, pela inadequação ao trabalho forçado ou das lembranças da liberdade, das tristezas da sujeição. E quantos foram assassinados pelos senhores, pelos sinhozinhos e sinhazinhas? E quantas Baronesas de Grajaú cegaram e assassinaram seus negros?
Não sabemos muito, queimaram os arquivos, como a ditadura o fez, porque a desmemória é também um instrumento de dominação
A história brasileira da infâmia, pinçada na verdade dos fatos, talvez pudesse começar com a chegada dos africano aos portos brasileiros. Assim que desembarcados, eram submetidos a dois rituais, a duas sinalizações: eram ferrados e marcados em brasa e, batizados. Marcados na pele e marcados na alma, estavam aptos para serem admitidos nas senzalas e na bem-aventurada comunidade cristã, estavam habilitados ao cativeiro e aos reinos dos céus.
Embora assinalados com o sinal da salvação tinham que construir seus próprios locais de oração. E temos então essa ignomínia chamada “Igrejas dos Homens Pretos”, porque o Deus e os Santos dos brancos, ainda que fossem os mesmos dos negros, não poderiam ser conspurcados, ultrajados com o insulto aviltante da presença dos negros, na hora da missa, há hora do terço. Um apartheid imundo, asqueroso patrocinado pela Santa Madre.
Estão aí, pelas cidades brasileiras, testemunhando essa infâmia, as tantas “Igrejas e Irmandades dos Homens Pretos”. Como será que os senhores de escravos, os padres, as piedosas sinhás e sinhazinhas imaginavam o céu? Para ascendê-lo, os negros seriam transmudados em brancos?
Confesso que sempre tive curiosidade em saber o pensamento da Santa Madre sobre esse grave, transcendental assunto.
Tirantes as ações de um que outro padre ou freira, a Igreja foi omissa, conivente e partícipe desse tricentenário holocausto dos negros no Brasil. É celebre a frase de Joaquim Nabuco. Disse ele, botando uma pá de cal em todas as tentativas de se relativizar o papel da Igreja, notadamente de sua indolente hierarquia, na escravização e maus tratos aos negros. 
Eis a conclusão do abolicionista:
“A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz a favor da emancipação”.
As sementes da dor espalham-se e germinam por todo canto da terra brasileira. A história de nossa infâmia prolonga-se, estende-se, ultrapassa os trezentos anos do cativeiro dos negros.
As sementes da dor marcam o passado e marcam o presente.
Rio Grande do Sul, novembro de 1844, Massacre de Porongos, último e aterrador ato da Revolução Farroupilha.
Os “Lanceiros Negros”, corpo de escravos engajados no movimento, estão acampados enquanto as forças rebeldes e do Império discutem o fim do levante. De repente, forças imperiais invadem o acampamento dos Lanceiros e massacra-os. Desarmados na véspera, pelo comando farroupilha, privados de suas temíveis lanças e clavinas os escravos defendem-se com as mãos. Mais de cem deles são assassinados.
Há quem jure pela autenticidade de uma carta do Duque de Caxias ao general David Canabarro, comandante rebelde, combinando o massacre. O extermínio dos “Lanceiros Negros” evitaria contratempos.
Mortos e enterrados, não exigiriam a libertação, como lhes fora prometido pelos revolucionários; silenciados pela chacina, não ajudariam a fomentar um movimento abolicionista no país, não serviriam de exemplo para outros levantes.
Segundo historiadores gaúchos, depois da Revolução, quase todos dos os negros que participaram do levante foram recambiados ao Rio de Janeiro para serem vendidos como escravos. O sonho de liberdade terminou no mercado do Valongo.
São Paulo, outubro de 1992, quase 150 anos depois do Massacre de Porongos, o Massacre do Carandiru:
“ E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
diante da chacina
111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos
ou quase pretos (…) de tão pobres (…)
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos (…) ’’.
Libertados em 1888, os negros continuaram sendo tratados como sempre o foram, pois “todos sabem como se tratam os pretos”.
A libertação não significou qualquer mudança de comportamento da sociedade em relação a eles. E tinham razão os Paulino de Souza e os Cotegipe, que se opunham à extinção da escravatura, brandindo dois argumentos: os negros ficariam ao desamparo, sem trabalho e sem sustento; e os negros seriam fator de grave perturbação da ordem.
Não era necessário ser um escravagista obstinado, como eram Paulino de Souza e o Barão de Cotegipe, para antecipar a tragédia, a catástrofe que se abateu sobre os negros libertos.
Ao contrário do que dizem até hoje alguns historiadores e trêfegos cronistas, para quem a extinção da escravatura nada extinguiu porque não havia mais negros no cativeiro, o 13 de maio de 1888 encontrou perto de um milhão de negros nas senzalas.
Os mesmos que inventam agora a “ditabranda”, tentando suavizar os terríveis anos do arbítrio, inventaram no passado a “escravatura branda”, tentando dar cores suaves aos 300 anos do holocausto da raça negra em terras brasileiras.
Um desses ligeiros, espertos rabiscadores de bobagens, à moda da Folha de S. Paulo, chegou a dizer que a escravatura negra no Brasil foi mais branda que o trabalhão assalariado na Inglaterra, no início da revolução industrial. Até pode ser, mas o que isso adoça, ameniza o cativeiro?
Não decorreram muitos anos para que a óbvia previsão dos escravagistas sobre o infortúnio dos negros libertos tornasse história. Afinal, os abolicionistas pouco ou nada se preocuparam com o dia seguinte. Ora, encerradas as solenidades do dia 13 de maio, que os negros libertos se atirassem ao mercado de trabalho, ao maravilhoso mundo das livres relações da oferta e da procura de mão-de-obra.
Ora, não queriam ser livres? Pois eram livres, que fossem atrás da sobrevivência, que os nossos ilustres abolicionistas tinham mais o que fazer, afinal a vida seguia.
Nas últimas décadas do século 19 e primeiras do século 20, explodem por todo o Brasil as consequências da omissão, da indiferença do governo e da sociedade quanto ao destino dos pretos.
O que são Canudos, Pau de Colher, Caldeirão da Santa Cruz do Desterro, Contestado? O que são esses levantes que se espalham em sequência, país afora, dos anos seguintes à abolição até a década de 40 do século passado?
As sementes da dor e do abandono germinaram revoltas.
E todas elas, cada uma delas foram impiedosamente, sanguinolentamente sufocadas. Massacre de Porongos, massacre do Conselheiro, massacre da Serra do Araripe, massacre de Casa Nova, massacre dos Pelados. Em cada uma dessas guerras de extermínio de pobres e pretos, firma-se a nossa tradição de matar, chacinar pobres e pretos.
Capítulos dolorosos, ensanguentados da história brasileira da infâmia.
Em Pau de Colher, entre 1937 e 1938, depois do assassinato de todas as mulheres e de todos os homens, as crianças sobreviventes foram mandadas para Salvador, Bahia e reeducadas em casas de famílias, em instituições religiosas, em quartéis.
Uma dessas crianças, anota o blogueiro José Fortes, torna-se anos mais tarde um dos oficiais do Estado Maior das Forças Armadas que participa do golpe militar de chefes militares do golpe de 1964.
O que me faz retornar mais uma vez à letra de Haiti, de Caetano Veloso:
…….quando você for convidado para subir no adro
da Fundação Casa de Jorge Amado
para ver do alto a fila de soldados quase todos pretos
dando porrada na nuca de malandros pretos (…..) 
É longa tradição, a bem aprendida lição de fazer dos próprios negros os capitães de mato à busca dos negros que transgridam a ordem estabelecida dos brancos.
E são negras ou quase negras ou quase pretas, de tão pobres são tratadas, as milhares de crianças que todos os anos são abatidas a tiros nas ruas de nossas cidades.
Em 2010, quando, mais uma vez, como hoje, avolumaram-se as vozes a favor da redução da maioridade penal, foram assassinadas no Brasil, oito mil e seiscentas crianças.
Ouçam, registrem, não fujam, não tapem os ouvidos: em 2010 foram assassinadas no Brasil 8.600 crianças! E, no ano passado, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus-tratos e agressões, segundo registros oficiais, e como os registros oficiais são o que são, talvez seja lícito quintuplicar esse número.
Mas não basta. Esse massacre ainda é pouco, queremos mais: queremos emancipar essas crianças, torná-las legalmente adultas para poder prendê-las, julgá-las, condená-las, e transformá-las em bandidos. Para assassiná-las, não importamos que sejam crianças. Mas queremos mais, queremos julgar como adultos os que escaparam do massacre. Não queremos que sobre ninguém, como em Porongos, em Canudos, em Pau de Colher, no Caldeirão, no Contestado, em Carajás, no Carandiru.
(….) mas (…) são quase todos pretos
ou quase pretos ou quase brancos, quase pretos de tão pobres
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos
Será que não bastam esses capítulos tão terríveis dessa nossa história da infâmia? Será que a nossa impiedade vai agora acrescentar a ela infâmia da redução da maioridade penal?
Mais de oito mil crianças assassinadas no Brasil em 2010. Mas a morte delas não apareceu nos noticiários, não arrancou discursos indignados, não mobilizou campanhas na mídia e na internet.
Não, porque..
(…..) são quase todos pretos
ou quase pretos (…)quase pretos de tão pobres
e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos (…)
Para encerrar, ocorre-me um versinho:
“ Treze de maio
é um dia muito bonito
a congada se reúne
para festejar São Benedito;
Izabel é uma santa milagrosa
libertou a escravidão
por ser muito caridosa.”
E não poderia deixar também de lembrar de outro hino:
“A 13 de maio na cova da Iria,
No céu aparece a Virgem Maria,
Ave, Ave, Ave Maria…”
A 13 de maio de 1917, dá-se a aparição de Nossa Senhora de Fátima a três crianças portuguesas. E, partir daí, por muito tempo, o dia 13 de maio, firmou-se em nosso calendário não como o dia da libertação dos escravos pretos e sim o dia da alvíssima senhora de Fátima.

domingo, 5 de maio de 2013


DIÁRIO DE BORDO (Paranapiacaba)

Orientações (alunos do Colégio da FSA)


  • Partindo do campus da FSA, observe as características da paisagem urbana andreense (ocupação, atividades predominantes, tipos de edificações, idade das construções, valores investido nelas etc.). 
  • Observe também a mudança da paisagem quando atingimos a área de mananciais (ocupação, presença de elementos naturais e elementos construídos etc.).
  • Em cada um dos pontos estratégicos da viagem (campus, início do trecho da rodovia SP-122, chegada em Paranapiacaba, descida à vila etc.), anote os dados referentes às condições atmosféricas (tempo e temperatura). Faça o mesmo no retorno. Não esqueça de indicar os horários das anotações. Caso não disponibilize de dados exatos de temperatura, faça estimativas do tipo: esquentou, esfriou, um pouco mais quente, um pouco mais frio, sensação de calor, sensação de frio etc.
  • Observe, ainda, a posição geográfica, se possível com a utilização de bússolas, mapas e GPS (se isso não estiver disponível, anote os pontos de referência: bairro, km etc.).
  • Observe e anote características do relevo por onde passamos até a chegada à vila de Paranapiacaba.
  • Em Paranapiacaba, observe e descreva as características das ruas e das edificações da Vila (parte Alta e parte Baixa), diferenciando-as.
  • Observe e descreva os elementos estruturais e arquitetônicos da estação e do pátio da estação ferroviária de Paranapiacaba.
  • Produza fotos e desenhos relativos às paisagens observadas.

A título de sugestão, segue abaixo uma ficha para as anotações relativas às paisagens observadas. Caso queira utilizá-la, imprima-a ou copie-a.

  DIÁRIO DE BORDO (Excursão à Paranapiacaba) ____/ maio /2013 



CAMPUS DA FSA
TRECHO URBANO
SP 122
PARANAPICABA
Horário
SAÍDA
CHEGADA
IDA
VOLTA
IDA
VOLTA
CHEGADA
SAÍDA
Tempo e temperatura
















Relevo




Ocupação do espaço




Outras observações





terça-feira, 23 de abril de 2013

O cheiro da pobreza

O objeto que representa a civilização e o progresso não é o livro, o telefone, a Internet ou a bomba atômica. É a privada
por Mario Vargas Llosa





Há três anos, durante uma viagem de Lima a Ayacucho por terra, fizemos uma escala no meio de uma chapada na cordilheira, numa aldeia onde havia um pequeno posto policial. Pedi licença ao chefe para usar o banheiro. "À vontade, doutor", disse ele gentilmente. "O senhor quer urinar ou defecar?". Respondi que a primeira alternativa. Sua curiosidade era acadêmica, porque o "banheiro" do posto era um cercado exposto à intempérie onde urina e fezes se confundiam em meio a nuvens de moscas e um fedor estonteante.

A lembrança dessa cena me perseguiu sem trégua enquanto, às vezes tapando o nariz, eu folheava as 422 páginas de um relatório, recentemente publicado pelas Nações Unidas, intitulado A água para além da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água. A prudência do título e a frieza e neutralidade de sua redação burocrática não impedem que esse extraordinário estudo, sem dúvida inspirado na sábia concepção de economia e progresso de Amartya Sen - um economista que não acredita que o progresso se resuma a estatísticas -, estremeça o leitor, ao confrontá-lo com rigor cruel à realidade da pobreza e seus horrores no mundo em que vivemos. A pesquisa realizada por Kevin Watkins e sua equipe deveria ser consulta obrigatória para todos os que queiram saber o que significa - na prática - o subdesenvolvimento econômico, a marginalização social e o fosso que separa as sociedades que os padecem daquelas que já atingiram um nível de vida alto ou médio.

A primeira conclusão dessa leitura é que o objeto que representa a civilização e o progresso não é o livro, o telefone, a Internet ou a bomba atômica, e sim a privada. Onde os seres humanos esvaziam a bexiga e os intestinos é determinante para saber se ainda estão mergulhados na barbárie do subdesenvolvimento, ou se já começaram a progredir. As conseqüências desse fato simples e transcendental na vida das pessoas são vertiginosas. No mínimo um terço da população do planeta - uns 2,6 bilhões de pessoas - não sabe o que é um sanitário, uma latrina, uma fossa séptica, e faz suas necessidades como os animais, no mato, à beira de córregos e mananciais, ou em sacolas e latas que são jogados no meio da rua. E mais ou menos 1 bilhão utiliza águas contaminadas por fezes humanas e animais para beber, cozinhar, lavar a roupa e fazer a higiene pessoal. Isso faz com que pelo menos 2 milhões de crianças morram, a cada ano, vítimas de diarréia. E que doenças infecciosas como cólera, tifo e parasitoses, causadas pelo que o relatório chama eufemisticamente de "falta de acesso ao saneamento", provoquem enormes devastações na África, na Ásia e na América Latina, constituindo a segunda causa de mortalidade infantil no mundo.

Num importante bairro de Nairóbi, no Quênia, chamado Kibera, é generalizado o sistema das chamadas "privadas voadoras", sacolas de plástico em que as pessoas fazem suas necessidades para em seguida atirá-las na rua (daí o nome). A prática eleva as doenças infecciosas no bairro a níveis altíssimos. E os principais atingidos são as crianças e as mulheres. Por quê? Porque cabe a elas cuidar da limpeza doméstica e do transporte da água, e com isso se expõem mais ao contágio do que os homens.

Em Dharavi, uma zona populosa de Mumbai, na Índia, há um único banheiro para cada 1.440 pessoas, e na estação das chuvas as enxurradas transformam as ruas da cidade em rios de excrementos. A fartura de água é, nesse caso, como no de muitas outras cidades do terceiro mundo, uma tragédia: as condições de existência fazem com que a água, em vez de vida, seja muitas vezes instrumento de doença e morte.

Paradoxalmente, a questão da água, indissociável da do saneamento, é talvez o principal problema que mantém homens e mulheres prisioneiros do subdesenvolvimento. Os dados do relatório são concludentes. Quando os pobres têm acesso à água, trata-se em geral de águas com todo tipo de bactérias, de males que os contaminam e matam. Mas, na maioria dos casos, a pobreza condena as pessoas a uma seca ainda mais catastrófica para a saúde e para as possibilidades de melhorar as condições de vida. Uma das conclusões mais chocantes da pesquisa é de que os pobres pagam muito mais caro pela água do que os ricos, justamente porque os povoados e bairros onde eles vivem carecem de instalações de abastecimento e descarga, o que os obriga a comprá-la de fornecedores comerciais, a preços exorbitantes.

Assim, os habitantes dos bairros pobres de Jacarta (Indonésia), Manila (Filipinas) e Nairóbi (Quênia) "pagam 5 a 10 vezes mais por unidade de água do que as pessoas que vivem nas zonas de elevado rendimento das suas próprias cidades - e mais do que pagam os consumidores em Londres ou Nova York". Esse preço desigual faz com que os 20% de famílias mais pobres de El Salvador, Jamaica e Nicarágua invistam um quinto de seus rendimentos em água, ao passo que no Reino Unido o gasto médio dos cidadãos com a água representa apenas 3% de sua renda.

Não resisto a citar essa estatística do relatório: "Quando um europeu puxa uma descarga, ou quando um americano toma banho, utiliza mais água do que a disponível para centenas de milhões de indivíduos que vivem em bairros degradados ou zonas áridas do mundo em desenvolvimento". E também a estimativa de que, com a água poupada caso os "civilizados" fechássemos a torneira enquanto escovamos os dentes, um continente inteiro de "bárbaros" poderia tomar banho.

À primeira vista, não parece haver muita relação entre a falta de água e a educação das meninas. E, no entanto, ela existe e é estreita. O relatório calcula que 443 milhões de dias letivos são perdidos a cada ano por causa de doenças ligadas à água, e que milhões de meninas faltam à escola e recebem uma educação deficiente ou nula, e em todo caso inferior à dos meninos, por terem que buscar água diariamente em açudes, rios e poços que, muitas vezes, ficam a horas de caminhada.

Em "Os miseráveis", Victor Hugo escreveu que "os esgotos são a consciência da cidade". Numa dessas digressões do narrador que pontuam o romance, enquanto Jean Valjean chapinhava na merda com o desmaiado Marius às costas, arriscou uma curiosa interpretação da história a partir do excremento humano. O formidável estudo da ONU faz coisa parecida, sem a poesia nem a eloqüência do grande romântico francês, mas com muito mais conhecimento científico. Propondo-se a apenas descrever as circunstâncias e conseqüências de um problema concreto que atinge um terço da humanidade, o relatório radiografa com dramática precisão o extraordinário privilégio de que os outros dois terços desfrutamos toda vez que, quase sem perceber, abrimos uma torneira para lavar as mãos ou o chuveiro para receber esse jato de água fresca que nos limpa e revigora, ou quando, impelidos por uma dor de barriga, sentamos na intimidade do banheiro, aliviamos as entranhas e, distraídos, limpamos com um pedaço de papel higiênico todos os rastros dessa cerimônia, para em seguida puxar a descarga e sentir, no turbilhão do vaso, nossa sujeira recôndita sumir nas entranhas dos esgotos, longe, longe de nossa vida e nosso olfato, para o bem da própria saúde e bom gosto.

Como é infinitamente diversa a experiência desses bilhões de seres humanos que nascem, vivem e morrem literalmente sufocados pela própria imundície, sem conseguir arrancá-la de suas vidas, pois, visível ou invisível, a sujeira fecal que expulsam volta para eles como uma maldição divina, na comida que comem, na água em que se lavam e até no ar que respiram, causando-lhes doenças e mantendo-os no limite da subsistência, sem chance de escapar dessa prisão na qual mal sobrevivem.

Um dos aspectos mais sombrios da questão é que, em grande parte por causa do nojo e da repulsa que os seres humanos sentimos por tudo o que tem a ver com a merda, os governos e organismos internacionais de promoção do desenvolvimento não costumam dar a ela a devida prioridade. Geralmente a subestimam, e dedicam recursos insignificantes a projetos de saneamento. A verdade é que viver em meio à sujeira é nefasto não apenas para o corpo mas também para o espírito, para a mais elementar auto-estima, para o ânimo que permite erguer a cabeça contra o infortúnio e manter viva a esperança, motor de todo progresso. "Nascemos entre fezes e urina", escreveu Santo Agostinho. Um calafrio deveria subir por nossas costas como uma cobra de gelo ao pensarmos que um terço de nossos contemporâneos nunca acaba de sair da imundície em que veio a este vale de lágrimas.

Disponível em <http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-5/dossie-urbano/o-cheiro-da-pobreza> Acesso em 23 abr 2013.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Elias Jabbour: O que quer a Coreia do Norte?

Quando há tanta dificuldade de saber sobre o que é outro lado, porque nuvens se sobrepõem aos olhos (nuvens fascistas!), textos como estes são como um antídoto. Eles realimentam o questionamento, a indignação, bagunçam o conforto dos moços que acham que a "paz" é uma palavra mágica, ou o oposto da "guerra".




O que quer a Coreia do Norte?


Nem sempre imagens têm mais valor do que mil palavras. No caso em questão, as imagens e o retorcimento da retórica explanada pelo governo da Coreia do Norte são parte de um grande jogo de ridicularização de um regime cujo único objetivo é a autodefesa. Também existe uma ponta de luta pela sobrevivência. Sobrevivência que significa a própria sobrevida de uma nação milenar. E para mim isso basta.

Por Elias Jabbour*

Perguntemos a qualquer letrado, ou especialista. Você sabia que enquanto a Europa se
ensanguentava em guerras religiosas, a Coreia já era uma nação com todos os traços que poderiam a classificar como um Estado Nacional precoce e anterior ao nascimento de Cristo? 

Você sabia que houve uma guerra entre os lados norte e sul da península coreana entre os anos de 1950 e 1953? Você sabia que foi a primeira vez, desde a independência dos EUA (1776) que os norteamericanos assinaram um armistício, ou seja, foram derrotados pela primeira vez em quase 200 anos? Você sabia que desde 1776 os EUA nunca ficaram longe de uma guerra, fora dos seus domínios, por mais de dez anos? Você sabia que na Guerra da Coreia caiu, sobre o lado norte da península, o correspondente a dez bombas nucleares testadas em Hiroshima e Nagasaki? Você sabia que, desde 2001, estão apontadas, à capital da Coreia do Norte (Pionguiangue), cerca de 60 mísseis carregados de ogivas nucleares?

Mais perguntas: Você tem notícia acerca da invasão de um algum país por parte da Coreia do
Norte? Você sabia que o país mais bloqueado, cercado e difamado no mundo é a Coreia do
Norte? Será que essa difamação tem alguma relação com a derrota dos EUA na já referida guerra? Será que querem condenar a Coreia do Norte ao retorno à Idade da Pedra? Será que a Coreia do Norte há 60 anos não é o espinho na garganta dos EUA? Diante dos fatos e da história, você acha que os EUA fariam com a Coreia do Norte o mesmo que fizeram com o Iraque, o Afeganistão e outros? A Coreia do Norte tem ou não o direito de se defender? Você tem alguma dúvida sobre o destino de Kim Jong Un: seria recebido com festa num exílio na Europa ou teria o mesmo destino, com os mesmos requintes de crueldade, reservado a Muamar Kadafi?

Responder estas questões não é uma tarefa complicada. Um mínimo de honestidade já bastaria para saber o que está em jogo nesta guerra psicológica em curso na península coreana. De imediato sugiro qualquer julgamento moral sobre a natureza do regime nortecoreano, se é socialista ou não, se é democrático ou ditatorial, bonito ou feio, rude ou sofisticado. Tem gosto para tudo. Também não seria muito legal tomar a máxima do chanceler brasileiro (Antonio Patriota), segundo quem esperava uma “atitude mais ocidentalizada do líder nortecoreano”.

Talvez Antonio Patriota esteja levando a sério demais o conselho de Huntington sobre um Choque de Civilizações, quando na verdade tanto Huntington quanto Patriota não passam de vítimas de um verdadeiro “choque de ignorância”. Meu parêntese continua para externar algo mais de fundo. É chocante imaginar que o chefe de nossa chancelaria nunca tenha lido Edward Said (“Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente”), nem tampouco Barrington Moore Jr. (“As Origens Sociais da Ditadura e da Democracia – Senhores e Camponeses na Construção do Mundo Moderno”). De forma explicita em ambos os livros ficam claras as evidências, na Ásia, de práticas democráticas ao nível da aldeia que remontam ao menos 3.000 anos.

O que quer de fato a Coreia do Norte, partindo de um julgamento mais pautado pela história? É evidente que o regime busca sobrevida e para isso nega a lógica da rendição incondicional tão cara a outras experiências, entre elas as da URSS, Leste Europeu e recentemente da Líbia.

Uma nação que historicamente teve seu território sob a cobiça estrangeira, cercada de grandes potências por todos os lados, passando por uma sanguinária ocupação japonesa e que sabe do que são capazes os EUA, não pode se dar ao luxo de esperar o bonde da história passar. O bonde da história derrotou as experiências socialistas da URSS e Europa, levando quase a nocaute por asfixia o governo da Coreia do Norte na década de 1990. Os últimos 25 anos foram marcados por privações de todo tipo, levando inclusive a fome para o outro lado do rio Yalu. O bloqueio, a fome imposta de fora para dentro e as inúmeras ameaças militares e provocações (Coreia do Norte como parte do “Eixo do Mal”, segundo Bush) só fez restar ao governo nortecoreano a opção de se “armar até os dentes” diante do que ocorria em Belgrado sob as hostes das chamadas “intervenções humanitárias”.

Poucos regimes no mundo tem uma noção da política como uma ciência que leva em conta não somente a correlação de forças, mas também o chamado tempo e espaço. Asiáticos e milenares que são os coreanos dão mostras de ter ido além de Maquiavel, aproximando-se de Lênin acrescido de alguma sabedoria confuciana e espírito de rebeldia herdado pelos ensinamentos de Laotsé. Somente gente preparada poderia manter em pé um país cercado, humilhado e ameaçado desde seu nascedouro e com um cenário recrudescido nas últimas duas décadas. 

O conceito de ditadura não serve de explicação. Mais pobre ainda é levar à sério certas conversas do tipo “governo que se mantém às custas da fome do povo e do não cumprimento dos direitos humanos”, quando na verdade a soberania nacional está acima de qualquer direito humano. Ou se acredita ser possível algum direito humano sob ameaça ou intervenção estrangeira? O único direito humano universal é o direito à vida. E o direito a vida naquela parte do planeta se confunde e se entrelaça com o direito de ser nação soberana. É simples, sem ser simplista: a Coreia do Norte não está de brincadeira, pois sabem com quem estão lidando e do que são capazes os EUA.

Os nortecoreanos querem ter o direito de ser o que eles decidiram ser desde a explosão das
primeiras revoltas camponesas contra a ocupação japonesa, ainda na década de 1910 do século passado. Ao invés de buscarmos dar lições de democracia, civilidade e de governo para uma nação milenar, seria mais interessante entender como um país exposto àquelas condições pode alcançar um nível de desenvolvimento tecnológico capaz de projetar e lançar satélites artificiais, mísseis intercontinentais e mesmo bombas nucleares, algo que nem nossos amigos do Irã e seus imensos recursos petrolíferos conseguiram até hoje.

Acho que se decifrarmos a formação social que forjou um povo capaz de expulsar Gengis Khan de seus domínios, no auge do poderio militar do Império Mongol, chegaremos a explicações mais plausíveis e próximas da realidade.

Elias Jabbour é doutor em Geografia Humana pela FFLCH-USP. Autor de “China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado” (Anita Garibaldi/ EDUEPB, 2006).


Disponível em <http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=210370&id_secao=9> Acesso em 11 abr 2013.